Setembro Doce | Rona
Começa um dia, ao entrar no seu atelê, a sensação instantânea de comunhão. Filho de Oxóssi, Rona faz do seu lugar de trabalho um lugar de trocas permanentes. Esse fluxo ininterrupto do artista com o mundo faz de seus trabalhos uma extensão infinita do real.
Um maço de envelopes esquecidos ou uma pilha de caixas da FedEx, por exemplo, resurgem como uma série de desenhos tratando da mobilidade e do desaparecimento. Rona resiste à qualquer achatamento, não por um ato de bravura mas por uma natural permeabilidade e um extremo pertencimento às coisas da terra. Essa forma de estar aqui permite uma liberdade de usos que vai, a todo tempo, abrindo caminhos. Nem todos belos e asseados, pelo contrário. É preciso passar pela violência, pelo pornográfico, pelo sofrimento, pela perda.
No entanto, diferente da literalidade representativa recorrente no tempo do exaspero político, a digestão de Rona é fantástica, encantada e não retórica dos episódios da crueldade urbana. Na série Primos, vemos a repetição dos rostos barbudos de amigos assassinados. Ainda que feitos um a um e guardando suas diferenças, as feições se tornam imagens e, nessa condição, se aproximam mais e mais de um carimbo ou estêncil como os que vemos reproduzidos na rua como ícone de alguma causa política. Ao contrário da imagem ícone, essas imagens são indeterminadas, não invocam nenhuma figura mas sim uma lembrança. Dessa lembrança, Rona funda uma mitologia. Os Primos e outras entidades povoam os trabalhos de Rona. A capacidade de refazer os elos entre percepção, memória e simbólico confere uma extrema imprevisibilidade e diversidade de meios. O bordado convive com o desenho, a escrita invade a pintura que é também cenário e instalação. A poesia do evento volta como memória material. A cabeça que encostava no colo da mãe e sentia os pregadores de prontidão antes de ir para o varal agora recupera os mesmos como colar. O henê que escorria do cabelo lembra a insistência da passagem do tempo gravada na escada. O pai que peneirava a areia já revelava ali uma primeira coreografia. Rona vê o familiar e o cotidiano não como banal, mas sim como potencial. Basta uma linha para fazer o corpo e dali seguimos juntos com ele.
curadoria | João Paulo Quintella / curadora assistente | Ana Bourdagohe